Ela queria ser orgulho,
Ser boca e ouvido.
Queria dar um conselho.
Esconder o mundo feio.
Mostrar só o mundo lindo.
Ela era gestora imobiliária. Decoradora de interiores e exteriores. Contabilista. Médica.
Mas no BI dizia apenas: "não sabe assinar".
Ela esperava caber nesse mundo,
O que pintava para os pais.
Se fizesse muitos desenhos,
Pertenceria à folha, à família.
Seria competente.
Os Legos eram dispensáveis.
Os telefonemas urgentes.
Escrever rápido. Traduzir em simultâneo.
Ela queria, no fundo, ser necessária
Mas também desligar os ouvidos.
Não queria mais ouvir pelas duas.
Ao contrário das outras meninas,
Ainda não queria ser adulta.
Tinha faltado a tantos recreios...
Ansiava por um recreio suplementar.
Mas só as aulas eram substituídas — por mais aulas.
Ela queria ser criança - só mais um bocadinho,
Mais uns segundos de colo.
Ela queria fingir que adormecia no sofá.
Mas ninguém a ouvia a fingir.
Ela queria trocar de jogo.
Ela não queria brincar mais.
Ela não queria ser mais filha.
Mas ela já tinha nascido.
Tinha de escrever. Falar.
Ouvir, traduzir, interpretar.
Tinha de fingir que não queria ir brincar.
Tinha de ficar, não adormecer, trabalhar.
Tinha de conter, não contestar.
Cuidar do outro. Nunca de si.
Ouvir antes de ter ouvido.
Tinha de aguentar.
Guardar, aquecer, estorricar.
Lembrar antes de o hipocampo se formar.
Completar frases.
Adivinhar o que era família
antes de saber o que são
palavras da mesma família.
Ela tentou não ouvir.
Tentou não falar.
Tentou denunciar.
Perdeu o amor. Perdeu o afeto.
Percebeu que só podia aguentar.
Tentou puxar a mão da mãe,
Levá-la até ao parque.
Dizer que estava farta.
Foi obrigada a desculpar-se:
“Não era isso que queria dizer…”
Tentou ser sem querer.
Sem brincar. Sem desejar. Sem sentir.
Pediu ajuda. Não teve.
Sentiu culpa de ouvir.
De não calar.
De falar.
Quando era ela a contar, nas escondidas,
Nunca encontrava quem a amava.
Tentou compreender.
Mas precisava de, um dia,
Alguém lhe ter dito
Que a compreendia.
Não conseguia dormir.
Acima da escola, o trabalho dos pais.
Ela não era essencial como os demais.
Essenciais - só a sua boca, o seu ouvido.
Foi estudar psicologia.
Tentou de novo reparar.
Tentou três vezes, as três vias.
Colher frutos de uma árvore sem raízes.
Curar-se. Curar alguém.
Mas sempre que alguém a chamava,
Lembrava-se da mãe.
Deram-lhe limões sem sumo.
Uma receita de chantilly
E as natas quentes…
Frigorífico avariado.
Tentou reparar
com mãos molhadas.
Tentou ligar a alguém
Com a água toda no microfone.
Tentou defender-se.
Encontrou o cinismo.
Tentou não absorver o mau.
Virou um quisto.
Tentou ensinar.
Mas só conhecia
O contrário do que se ensina.
Desistiu de responder.
Desistiu de ficar.
Desistiu da intimidade.
De aprender a saudade.
Pensou: se eu fizer chorar e me rir,
Não vou ter de chorar.
Ela parecia má.
Mas tinha sido boa - tempo demais.
Ainda era boa.
Só já não se via.
Eu não a conheço… mas sinto que é boa, está apenas magoada!
A culpa não é dela.